A
Pastoral Carcerária Nacional emitiu na quinta-feira, 19, nota sobre as
condições das prisões no Brasil, dado os últimos acontecimentos
envolvendo os massacres ocorridos nos complexos penitenciários de Manaus
(AM), Roraima (RR) e Rio Grande do Norte (RN).
No texto, a Pastoral afirma que apesar
do clamor nacional em torno dos últimos massacres ocorridos, o principal
produto do sistema prisional sempre foi e continua sendo a morte, a
indignidade e a violência.
Para a Pastoral é preciso que na atual
conjuntura, a população não caia na falácia das análises simplistas e
das medidas que pretendem apenas aplainar o terreno até o próximo ciclo
de massacres. "É preciso enfrentar os pilares do sistema e mais do que
nunca, continuar a criar laços verdadeiros de solidariedade com o povo
preso e seus familiares”, diz trecho da nota.
Confira, abaixo, a nota na íntegra.
Nota da Pastoral Carcerária: Não é crise, é projeto
“(...) enquanto não se eliminar a exclusão e a desigualdade
dentro da sociedade e entre os vários povos,
será impossível desarraigar a violência.”
(Papa Francisco, Evangelii Gaudium, 59)
Apesar do clamor nacional que se seguiu aos massacres de Manaus, Roraima e Rio Grande Norte, o principal produto do sistema prisional brasileiro sempre foi e continua sendo a morte, a indignidade e a violência. Em números bastante subestimados, fornecidos pelas próprias administrações penitenciárias, no mínimo 379 pessoas morreram violentamente nas masmorras do país em 2016 , sem que qualquer “crise” fosse publicamente anunciada pelas autoridades nacionais.
Nesse sistema, sob a tutela e
responsabilidade do Estado, onde a mortalidade é 6,7 vezes maior do que
fora dele, e as situações de violações sistemáticas de direitos são
notórias e encontram-se detalhadamente registradas em uma infinidade de
relatórios produzidos por organizações governamentais e não
governamentais, não foi por falta de avisos ou “recomendações” que as
pessoas privadas de liberdade deixaram de ser mortas e vilipendiadas em
sua dignidade.
O que se deduz da atual conjuntura é que
a morte de centenas e a redução de centenas de milhares à mais abjeta
degradação humana parece não ser digna de incomodo ou atenção quando
executadas metodicamente e aos poucos, sob o verniz aparentemente
racional das explicações de caráter gerencial, e sem que corpos
mutilados sejam expostos ao olhar da mídia. O acordo rompido em Manaus,
Roraima e Rio Grande do Norte não foi o da convivência pacífica entre as
facções, que nunca existiu, mas entre o Estado e o “grande público”, a
quem jamais deveria ser permitido enxergar as verdadeiras cores deste
grande massacre brasileiro que se desenrola há tempos.
A guerra de facções por sua vez,
transformada em uma narrativa lúdica, desinforma e distrai daquilo que
jaz no cerne da questão: o processo maciço de encarceramento que
vivenciamos, e que desde 1990 multiplicou em mais de sete vezes a
população prisional brasileira, somando, juntamente com os presos
domiciliares e em medida de segurança, mais de 1 milhão de seres humanos
sob tutela penal, segundo dados do CNJ .
Esse formidável, custoso e cruel aparato
de controle social, estruturado em pleno período democrático, deita
raízes profundas em nosso sistema econômico que “exclui para se manter”,
como já afirmou o Papa Francisco , e cuja lógica neoliberal e
mercantilizante atinge todas as relações humanas, sem exceção. Crime e
castigo tornaram-se commodities, e corpos, quase todos pretos, novamente
tornaram-se objetos de comércio e barganha, dessa vez em benefício dos
senhores das prisões privadas.
Juízes, promotores e defensores, por
ação ou omissão, cada qual com sua parcela de responsabilidade, também
desempenham papel central na gestão deste caos, emprestando legitimidade
jurídica para um sistema de encarceramento que funciona à margem de
qualquer legalidade. Em relatório divulgado em outubro de 2016 , que
apresentou o resultado do acompanhamento de mais de uma centena de casos
de tortura em 16 estados e no Distrito Federal, a Pastoral Carcerária
já apontava a participação estrutural do sistema de justiça na ocultação
e validação de práticas violadoras de direitos.
Diante do aparente colapso da estrutura
prisional brasileira e da repercussão nacional e internacional dada ao
caso, o Sistema de Justiça retomou às pressas os paliativos mutirões
carcerários, e o Governo Federal desfiou um rosário de propostas
absurdas, que vão do reforço à fracassada política de construção de
novas unidades, até o descabido e perigoso uso das Forças Armadas no
ambiente prisional. Soma-se a essas propostas o desvio de verbas do
Fundo Penitenciário Nacional para outras finalidades, por meio da Medida
Provisória 755, e o Decreto n.º 8.940/2016, que estabeleceu as regras
mais rígidas dos últimos anos para a concessão do indulto presidencial.
Assim, o Governo Federal, alicerçado
pelo Judiciário e o Ministério Público, vai reforçando a agenda
repressiva e encarceradora, que aplicada nas últimas décadas resultou na
mesma catástrofe que agora se propõe a resolver. Na esteira destas
propostas, ONG’s e veículos de imprensa pedem a “retomada do controle”
das prisões pelo Estado, num apelo cifrado por mais violência, e listas
de soluções e medidas reformadoras são febrilmente reeditadas, vindo ao
socorro de um sistema que há mais de 30 anos evidencia sua irreformável
natureza desumana.
Desde 2013 um conjunto de organizações e
movimentos, entre eles a Pastoral Carcerária, Mães de Maio e Justiça
Global, tem pautado a necessidade de ações estruturais para reverter o
atual quadro de encarceramento em massa, por meio das propostas
articuladas na Agenda Nacional pelo Desencarceramento , e alertando para
a contínua degradação do sistema.
Na atual conjuntura, não podemos cair na
falácia das análises simplistas e das medidas que pretendem apenas
aplainar o terreno até o próximo ciclo de massacres, nem titubear no
enfrentamento aos pilares desse sistema, como a atual política de guerra
às drogas, a militarização das polícias, o aprisionamento provisório, a
privatização do sistema prisional, e a política de expansão do aparato
carcerário.
Se a opção que alertávamos há tempos era
pelo desencarceramento ou barbárie, o Estado de forma clara e reiterada
optou pela barbárie. Parafraseando Darcy Ribeiro, já não se trata mais
de uma crise, mas de um projeto. E a perversidade de tal projeto não
poderá cair sob nenhuma anistia. Poderá haver anistia pactuada entre os
poderes do Estado, mas não haverá perante a consciência e perante Aquele
que se apresentou sob a figura de um preso, torturado, executado na
Cruz, Jesus, o Nazareno, feito Juiz Supremo que julgará especialmente
aqueles que violaram a humanidade. (Lc 11,50-51)
Assim, mais do que nunca, devemos
continuar a construir laços verdadeiros de solidariedade com o povo
preso e seus familiares, reforçar o trabalho em torno da Agenda Nacional
pelo Desencarceramento, e redobrar nossa luta profética pela realização
do sonho de Deus: um mundo sem cárceres .